Bando De Cá
Tudo e um pouco a mais


domingo, 6 de junho de 2010  

Bibliófilos anônimos

ARTHUR DAPIEVE

02/06/00

Duas semanas atrás, sob o título "Melômanos anônimos", tentei descrever a angústia do sujeito que visita regularmente lojas de discos atrás do sentido da vida e, mal as deixa, se vê tomado pela certeza de que o sentido da vida na verdade estava não no CD que carrega no saquinho da Satisfaction, mas naquele outro, descartado por alguma razão já nebulosa. Não no Beck, mas no Belle & Sebastian, era só avançar um tiquinho mais na bancada do B. O tal sujeito não encontra sossego nem dormindo. Dias atrás, por exemplo, sonhei que tinha achado, numa loja não–identificada, um CD desconhecido do Grateful Dead – um CD que simplesmente não existe, composto por músicas que jamais foram compostas. Talvez seja uma mensagem do além, alô, Pigpen e Jerry Garcia falando, mas vá acordar com uma frustração dessas.

Pois bem. Saca essa paranóia colossal, essa sensação de que a indústria fonográfica mundial conspira contra você, essa compulsão cultural–consumista, saca? Bom, ela é a parte boa da minha busca pelo sentido da vida. Porque aos CDs pelo menos consigo dar vazão. Escuto tudo o que compro ou ganho. Não é pouca coisa, mas escuto. Uma vez posto na estante do corredor, talvez o disquinho nunca de lá retorne, lá, daquele vasto cemitério de sentidos da vida. No entanto, mesmo assim sua morte não terá sido em vão: durante 30 ou 74 minutos o mundo terá tido uma ordem. Estante no corredor? Sim. Não há espaço para CDs no escritório porque ele está tomado por livros, acumulados compulsivamente, ganhos, encomendados na Amazon, comprados na Leonardo da Vinci ou na mão do França, o vendedor de livros sem o qual as redações cariocas seriam bem menos cultas. Eles são a parte ruim da minha busca pelo sentido da vida. Acumulam–se, sem que eu os consiga ler na velocidade em que os adquiro. Filmes, você pode ver ou perder, tudo bem, eles não ficam ali na sua cara, acintosos, concretos como a náusea do Sartre. Às vezes, os livros me lembram aqueles carros empoeirados, nos quais algum gaiato riscou um apelo com os dedinhos – não "lave–me!" mas "leia–me!" Há um coro de livros nas estantes do escritório.

Outro dia, numa conversa sobre esse assunto com dois amigos, também vorazes freqüentadores de livrarias e sebos, cultíssimos, um deles soltou uma frase amarga que definiu com perfeição nosso desalentado estado de espírito: "Eu sou uma farsa". Queria dizer com isso que, diante de suas estantes galopantes, sentia–se como um ignorante socrático, aprendendo apenas que nada sabia. Acho que tentei consolá–lo com minha tese de que todos os livros de 800 páginas que realmente importam já haviam sido escritos, "Moby Dick", "Ulysses", "Ana Karenina". E que, portanto, nos sobrava a esperança de flagrar o sentido da vida em pequenas iluminações, no "Novecentos", do Alessandro Baricco, 72 páginas, formato pequeno, demandando menos tempo, oferecendo não pouco prazer. Não adiantou muito. Sou péssimo para consolar as pessoas. Vivo a dizer para elas que, let it be, um dia todos vamos morrer e que, então, nossos terríveis problemas já não terão mais a menor importância.

Dias depois descobri um texto de Michael Dirda, crítico literário do "Washington Post", que mostra que nós, bibliófilos anônimos, não estamos sós em nossa dor. De lambuja, Dirda nos oferece a dor do historiador Arnold Toynbee. Num dos primeiros capítulos de suas memórias, ele dizia que tinha trocado seu jovem "desejo faustiano" de ler todos os livros importantes do mundo pela realista constatação de que não ia conseguir e pela pragmática resolução de procurar apenas aquilo que de uma forma ou de outra pudesse contribuir para a sua própria obra. "A vida era curta e a literatura mundial vasta demais", sintetiza Dirda. Por seu turno, o crítico faz a serena descoberta de que também não vai conseguir ler tudo o que gostaria de ter lido. Por quê? Dirda responde com uma expressão não facilmente traduzível: "I’ve run out of future", algo como "estou sem futuro" dito como quem diz "estou sem gasolina". Acabou–se a chama da juventude, a longa fileira de dias pela frente. E com eles o tempo para se perder, por exemplo, nas 758 páginas de "Borboletas", de Vladimir Nabokov. "Proust pode mudar sua vida – se você o lê aos 19", escreve Dirda.

Dirda não mudou minha vida aos 36. Mas serviu–me de consolo: admito que depois de ter lido o seu texto as pilhas de livros por devorar me parecem menos ameaçadoras. Não que eu tenha desistido de ler aqueles sete volumes de "Em busca do tempo perdido" ali em cima. Não mesmo.

posted by RENATO DOHO | 12:24 AM
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