Bando De Cá Tudo e um pouco a mais |
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010 PEÇA SEM NOME Renato Doho Texto escrito décadas atrás. Sem revisões (a vontade é muita de modificar tudo), nem mesmo de eventuais erros gramaticais. Nem é peça pois faltam descrições de cenário e direção de cena. O mais curioso é que ao ler acabei me perguntando se eu mesmo tinha escrito isso. Quase tudo, tirando o início, não lembrava de nada. Provável ter sido escrito de uma só vez, sem reler. E sim, é ruim (e chata), mas o que importa aqui é o registro. Ato I Noite num quarto de hotel barato. Chuva lá fora. Al está se enxugando de um banho quente, enquanto Rita lê um livro estirada na cama. AL: - O que você lê, querida? RITA: - "Asas Cortadas" do Bradley. AL: - Que Bradley? RITA: - Richard Bradley, aquele escritor que se suicidou ano passado. AL: - Ah, me lembro. É bom? RITA: - Interessante. Retrata de forma bem depressiva a história de uma garota que é forçada a cuidar do filho gerado de um estupro, suas dificuldades e a relação esquisita com ele até a idade de 20 anos. AL: - Meu Deus! Por que ela não abortou? RITA: - Ia contra suas crenças. Matar uma vida, você sabe. AL: - É. E por que até aos 20 anos? O filho morre? RITA: - A história é em flash-back. Quem narra são os protagonistas da história que recordam de certos fatos e vão montando uma visão aproximada do que foi a vida dela. É como um "Cidadão Kane". Até agora já li os relatos do filho, da mãe dela e do próprio estuprador que era um tio distante. Ainda não sei do que ela morreu, só sei que está morta quando o livro começa. Enquanto Rita relata a história Al se veste e se senta numa cadeira na frente da cama para calçar suas meias. AL: - É, bem interessante. Esse Bradley não escreveu aquele livro sobre um personagem que só existia nas lembranças de certas pessoas que confundiam ele com várias outras? RITA: - Hum, hum. Era um inconsciente coletivo que só no final você percebia que ele não existia, era um projeção de sonhos, ódios, desejos, frustrações e alegrias das pessoas que um detetive entrevista para solucionar um caso antigo. Al deita na cama ao lado de Rita e a abraça. AL: - Pena que não teremos novas histórias dele, era um escritor promissor. RITA: - Só tinha 25 anos. AL: - Morreu por quê? Amor? Dinheiro? RITA: - Dizem que era porque ele não suportou a rejeição dos pais ao descobrirem que ele era homossexual. AL: - Ele era bicha! Quer dizer, homossexual? RITA: - Era, por quê? AL: - Ah, será que é uma condição básica para ser um bom escritor ou um artista talentoso? Wilde, Tchaikovsky, Dean... RITA: - Que nada! Temos tantos artistas homossexuais bons quanto heterossexuais. A arte ultrapassa as preferências sexuais. AL: - Tem o fato da sensibilidade. Parece um espírito feminino em corpo de homem. RITA: - Quem sabe? AL: - Acho que vou largar você e ficar com um garotão por aí pra ver se tenho uma idéia genial para terminar o roteiro. RITA: - Deixa de besteira. Gosto de você assim: [altera a voz para uma mais poética que enfatiza o tempo de fala] sensível e másculo, artista e amante. AL: - Totalmente fake! Os dois riem e se beijam. Ato II O mesmo quarto já de manhã. Rita dorme e Al está sentado numa escrivaninha, escrevendo com lápis algumas cenas do roteiro. AL: - [para si mesmo em voz baixa] Quando você vai voltar, então? Vou ter que esperar muito? [pausa] As coisas não deviam ficar assim como estão. Precisamos dar um fim nessa confusão que virou nossa vida. Não vou esperar você para sempre. E nem eu estarei aqui para ser esperado. [pausa] Rita acorda suavemente e sem que Al perceba o admira trabalhando, indo por trás dele sorrateiramente. AL: - [para si mesmo] Acho que isso é um adeus, não? Poderia ser um até logo. RITA: - Quem sabe um bom dia? Rita o abraça por trás e o beija, Al é surpreendido. AL: - Amor, bom dia. Te acordei? RITA: - Que nada. Al tira seus óculos e esfrega os olhos. AL: - Ah, esse roteiro não termina! Os dois não querem se separar e ficam ali no vai não vai. É torturante dar um fim para eles. RITA: - Quem sabe um final em aberto? AL: - É, mas eu queria pessoalmente saber o que vai acontecer, nem eu sei. É que eu gostei deles e lá dentro quero que eles fiquem juntos, mas devido ao que eles passaram ficaria piegas. RITA: - Que piegas! O que a gente já passou foi piegas? O dia que você se declarou foi piegas? AL: - Se você for ver pelo lado racional... Rita vira a cadeira e se senta de frente para Al e o beija. RITA: - Não tem lado racional. É amor, só isso. Entre beijos e carinhos eles conversam. AL: - Sabe que você podia escrever também? Um roteiro em dupla. RITA: - Não, ia ficar "muito piegas". AL: - Ah, não é assim. É que no cinema fica tudo mais exposto e estranho. O público não chega a conhecer profundamente o personagem porque só sabe certas coisas sobre ele, então não sabe reagir diante de certas atitudes dele, ele vai de acordo com a sua própria experiência de vida, se identificando ou não. Por isso ele às vezes acha uma coisa piegas ou forçada já que não correspondeu as atitudes que ele vivencia. RITA: - Mas nem todos acham isso. Tem gente que adora certos filmes e outros odeiam. AL: - Acho que aí vem uma questão de bom senso, compreensão e experiência. O público distingue o que pode ser bom ou ruim, certo ou errado e pesa as consequências. Se ele for experiente e perceber uma sinceridade por parte do autor ele se deixa levar pela emoção e compartilha essa sensação com o autor, mesmo outros achando piegas ou forçado. Já a compreensão vem do fato de que nem sempre a emoção lançada pelo autor vem de encontro com a sua, então você percebe a emoção e a avalia estética ou emocionalmente e a partir daí vê que existem outras pessoas que se identificam com aquilo e sendo uma boa obra você reconhece seu valor, mesmo não a admirando profundamente como outras pessoas. RITA: - Lindo. Acho que é por aí. Só não sei até que ponto essa compreensão tem que se estender. AL: - Aí vai de cada um. E sempre existe o senso real das coisas. RITA: - Coisa que poucos percebem. AL: - Você percebe. RITA: - Quer dizer que agora você diz isso. E quando fomos ver "Retratos De Uma Solidão" e você odiou o filme enquanto eu chorei bastante e adorei? AL: - É como eu disse. Eu sei quem era o autor, conheço o diretor que é também o roteirista e ele é uma pessoa horrível: falsa, gananciosa, convencida, de caráter fraco e traiçoeiro. Ele faz um filme todo sentimental e amoroso e eu devo achar isso bom? Todos os valores são colocados ali de forma oportuneira, manipuladora e nada pessoal. RITA: - Mas, a maioria que viu não conhece ele e aí, como fica? AL: - Deviam tentar conhecer. Temos que procurar saber quem são os autores de tudo quando vemos uma obra, seja ela política, artística, social e humanística. Senão chegaremos ao dia que admiraremos políticos corruptos que fazem alguma coisa, artistas falsos que dizem belas palavras ou cantam belas músicas, ladrões que financiam obras comunitárias, etc, enquanto as pessoas de boa intenção e verdadeiro intento serão postas um pouco de lado. Sempre se diz que o diabo é sedutor, que os grandes amantes são aqueles que sabem onde devem puxar as cordas das conquistadas. RITA: - Me lembra a Georgia. Como ela é facilmente manipulada pelo Fausto. Ele todo atencioso e carinhoso ao lado dela e por trás é um conquistador barato. Sabia que ele até tentou me cantar? AL: - Fausto? Como foi? Rita se senta na escrivaninha enquanto Al se apoia com os cotovelos nela, ficando Rita no meio de seus braços. RITA: - Foi na festa na casa da Monique. Ele veio todo manso, com aquela cara de quem tem um segredo que só você e ele sabem e querem continuar em silêncio. Sabe, cumplicidade? Como se dizendo mentalmente: eu sei que você quer transar comigo e que seu marido não percebe, mas eu sei satisfazê-la sem ele saber. Horrível, não é? AL: - E o que você fez? O Fausto é boa pinta. RITA: - Só se for pra você. Você é boa pinta e não precisa mostrar pra todo mundo. AL: - Eu, boa pinta? Ainda bem que você vê isso em mim. RITA: - Eu vejo sim. Bem, voltando, eu enrolei ele por alguns momentos e olhei para ele como se dissesse: já sei desse papo e estou cansada disso, não me interessa. AL: - E ele parou por aí? RITA: - Ele viu que não tinha chance, mesmo assim não deu o braço a torcer e lançou aquela de que eu ainda não o percebera realmente, era questão de tempo. AL: - Que sujeitinho! Sabe o que ele mais gosta de ficar falando comigo? Como ele conquista outras e engana amigos com suas esposas ou até irmãos. Parece que para ele todas as mulheres não resistem ao seu charme e ele se acha até digno, pois recusa algumas que ele vê que o marido sofreria muito e baboseiras mais. Como a mente se adequa às atitudes para que o indivíduo não sofra de consciência pesada. RITA: - Isso eu vi em psicologia. É um tal de desvio cognitivo ou ressonância cognitiva, não lembro direito. É quando você muda ou as atitudes para se adequar ao caráter ou o caráter para condizer com suas atitudes. AL: - Isso. Você acha que uma pessoa que não liga para outras pessoas não faz a mesma coisa com você por trás? Já tinha até te avisado, não é? RITA: - E veio como uma máquina, tudo programado, certinho, na hora certa, momento adequado, só esperando a vez. AL: - Mas a maioria cai. RITA: - Se deixam cair. Nem ligam que estão sendo só usadas mesmo. Já se sentem usadas pelo marido. AL: - É triste ver a Georgia. Ela nem desconfia. Se ficar sabendo pode ser pior. RITA: - Ele já te disse se gosta dela? Talvez goste, mas sente essa impulsão com outras. AL: - Que nada! Ele a vê somente como um lugar seguro para voltar. A visão machista e centralizadora: [Al altera a voz para uma mais forte e grave] a fortaleza onde voltarei depois de batalhar, depois de explorar o mundo e experimentar tudo, o lugar onde minha esposa serva e fiel me satisfará e me dará uma sensação de missão cumprida. Rita solta uma risada. AL: - [volta a voz normal] É isso. Fausto sabe que só a Georgia aturaria ele o dia inteiro, cuidaria de tudo para ele todo dia enquanto as outras não mexeriam um dedo, só são vorazes pelo sexo. E ele adora isso: ser visto como um objeto para satisfazer mulheres reprimidas e insatisfeitas. RITA: - Na verdade acho que ele curte também essa coisa de estar sendo vitorioso com relação aos outros homens. Sabe, sua mulher se satisfaz é comigo, te trai, tem você todos os dias mas deseja é ficar comigo e essas coisas. Uma competição de homem para homem. AL: - Uma homossexualidade reprimida você quer dizer? RITA: - Mais profundamente é isso. AL: - É. Vamos parar e tomar um belo café da manhã? A chuva parou de madrugada e o sol já está secando tudo. Fica aquele ar cheio de vapor que eu adoro. RITA: - Vamos nos trocar. Al e Rita trocam de roupa e escovam os dentes. Rita demora mais no cabelo todo bagunçado. AL: - Você se lembrou de trazer algum dinheiro trocado? RITA: - Tenho aqui na bolsa. Eles não aceitam cartão? AL: - Melhor dinheiro trocado. RITA: - Vamos? Os dois se abraçam e juntos saem pela porta. ATO III Lanchonete razoavelmente cheia. Al e Rita chegam e sentam numa mesa de centro. Uma garçonete vem atendê-los. GARÇONETE: - Bom dia. O que desejam? AL: - Bom dia. O que vem no café da manhã especial? GARÇONETE: - Leite, café, ovos, torradas, pastas, geléias, biscoitos, frutas e sucos de laranja e mamão. RITA: - Uau, está ótimo para mim. AL: - Dá para dois? GARÇONETE: - Claro. A garçonete sai para a cozinha. Georgia aparece num canto da lanchonete, toda desarrumada e quieta. AL: - Deveríamos dizer que esta manhã realmente surpreende depois do temporal de ontem. RITA: - Como se não tivesse havido nenhuma chuva. Impressionante! Al percebe Georgia, olha atentamente para ela sem reconhecê- la e se aproxima do ouvido de Rita. AL: - Rita, aquela não é a Georgia? RITA: - Georgia? Como ela poderia estar aqui? Rita se vira e olha Georgia. RITA: - Meu Deus, Georgia! Rita se levanta rapidamente e vai de encontro a Georgia. Al acompanha. RITA: - Georgia, é você? Georgia não demonstra nenhuma reação. Rita a sacode um pouco. RITA: - Georgia, sou eu. Rita. Georgia. Georgia! [grita]. As pessoas da lanchonete se voltam para onde estão Rita, Al e Georgia, mas logo retornam ao normal. AL: - Hei, Georgia. RITA: - Al, o que... Georgia, de repente, desata a chorar. RITA: - Georgia, o que foi? Georgia continua chorando compulsivamente. Rita e Al tentam acomodá-la melhor no banco. GEORGIA: - [grita] Faaaustoooo! Georgia se acalma. As pessoas novamente olham com interesse para eles. O gerente se aproxima da mesa. GERENTE: - O que acontece aqui? Posso ajudar? RITA: - Desculpe, ela é uma amiga nossa e estamos tentando saber o que aconteceu com ela. Por favor, desculpe. GERENTE: - Peça pra ela se acalmar senão os fregueses se assustarão. AL: - Não se preocupe. Al dizendo isso se levanta e encara o gerente face a face. AL: - Não vamos espantar os clientes, se é só isso que importa para você. O gerente se constrange e abaixa a pose. GERENTE: - Bem, tudo bem. Precisam de alguma coisa? RITA: - Água com açucar seria bom. GERENTE: - Vou providenciar. O gerente sai. AL: - Totalmente inexperiente no trato com clientes. RITA: - Nem quero imaginar ele se portando num assalto, ele deve fazer o assaltante matar metade da lanchonete. GEORGIA: - E ainda ser morto tentando evitar o assalto. Al e Rita percebem que Georgia voltou ao normal. RITA: - Georgia, tudo bem, o que houve? GEORGIA: - Ah, Rita. Fiz o que não devia fazer e paguei caro por isso. RITA: - O que foi? GEORGIA: - Sabe o Eduardo? Bem... Georgia pára e olha sorrateiramente para Al. RITA: - Não se preocupe, Al sempre sabe de tudo. Não tem nada que eu esconda dele. GEORGIA: - Até nossas confidências? RITA: - Algumas. Al e eu somos abertos nisso, você sabe. GEORGIA: - Não sabia que até nesse ponto. AL: - Não se preocupe. Nunca fiz julgamentos e nem cometi indiscrições. GEORGIA: - Bem, como eu ia dizendo... Neste momento, Fausto entra espalhafatosamente na lanchonete. FAUSTO: - [grita] Georgia! Georgia! Georgia se levanta. GEORGIA: - Fausto! Georgia tenta sair rapidamente pela saída dos fundos, mas Al e Rita a seguram. Fausto se dirige a eles com andar cambaleante. Al se interpõe entre ele e Georgia. AL: - Fausto, você está bêbado. FAUSTO: - Obrigado. RITA: - O que você também está fazendo aqui? GEORGIA: - Me larga, Rita. Georgia desata a chorar novamente. FAUSTO: - Eu? Eu sempre estive aqui. Esta lanchonete é onde eu vivi estes últimos 31 anos da minha vida. AL: - Vamos nos sentar. Al puxa Fausto para uma mesa. Rita faz o mesmo com Georgia. FAUSTO: - Tô com fome. Fausto bate na mesa. FAUSTO: - [grita] Comida! Al segura os braços de Fausto. AL: - Se acalme aí. A garçonete chega com o copo de água com açucar. GARÇONETE: - Aqui está. RITA: - Obrigada. Georgia bebe o copo e se acalma. AL: - Um copo de café puro, por favor. A garçonete vai para a mesa principal e enche um copo com café, trazendo para Al. AL: - Obrigado. Al faz Fausto beber o café. FAUSTO: - Argh, que coisa é essa? Eu não quero beber essa... Fausto desmaia e cai no sono. AL: - Apagou. RITA: - Ainda bem. [Vira- se para Georgia] Bem, Georgia, agora conte-nos tudo, sem enrolação. GEORGIA: - Fausto me pegou na cama com o Eduardo. Um momento de silêncio. RITA: - Só isso? GEORGIA: - Como só isso?! Eu traí o Fausto pela primeira vez e ele descobre tudo! Como fui idiota! AL: - Georgia... Com o olhar Rita censura Al. RITA: - Georgia, não se preocupe. Como isso foi acontecer, você ama o Fausto, não é? Georgia confirma com a cabeça. GEORGIA: - Amo. Mais que tudo. RITA: - Então... GEORGIA: - É complicado. Surgiu a oportunidade. Eduardo sempre foi solícito, compreensivo, um amigão. Ontem de manhã ele foi lá em casa para conversar comigo sobre a exposição do mês que vem. Eu vou patrociná-lo. Então, ele estava muito charmoso aquela manhã e não percebi que estava insinuando coisas para o meu lado. Quando vi estava abraçando e beijando ele no estúdio. Fizemos amor ali mesmo e foi tão diferente do que com o Fausto, não sei, nem melhor ou pior, diferente, proibido. Eduardo passou a tarde inteira lá e não paramos nenhum momento. Esqueci a hora e já era hora do Fausto chegar quando já estávamos na nossa cama. Foi a pior coisa que me aconteceu. Georgia começa a chorar. GEORGIA: - Fausto ficou petrificado. Eduardo teve tempo de se vestir e ir embora enquanto o Fausto ficou ali parado, me olhando sem qualquer emoção a não ser de espanto. Fui ficando cada vez mais humilhada e sai dali correndo. Peguei o carro, fui ao aeroporto e vim para cá, pois sabia que estavam aqui. Ia esperar mais um pouco e iria para o hotel onde vocês estão. Agora, não sei mais. Georgia acaricia Fausto dormindo com a cabeça na mesa. GEORGIA: - Me perdoa, querido. Perdoa? Rita e Al se olham sem ter o que dizer. ATO IV É noite na sala da casa de Al e Rita. Ninguém na sala. Rita chega da rua com vários tubos de cartazes e posters. Vai até a secretária eletrônica e a ativa para ver as ligações do dia. Enquanto isso, tira os sapatos e prepara um suco na cozinha. SECRETÁRIA ELETRÔNICA: - [voz feminina] Rita, aqui é a Cássia. Como foram as apresentações, os clientes gostaram? Espero que sim, aqui em Paris o tempo anda nublado. Vou sair hoje à noite. Volto no fim de semana. Me liga aqui no hotel amanhã. Valeu, tchau. - [voz masculina] Rita, os clientes me telefonaram agora mesmo às 10 horas para dizer que aprovaram a campanha! Valeu, garota! Até amanhã. - [Al] Oi, querida. Acertei o contrato, vou receber 5 por cento da bilheteria mais o salário estabelecido. Gostaram do final. Quem diria, hein. Vou telefonar pro Fausto e a Georgia para avisar. Quem sabe faremos uma salada especial no Domingo para comemorar? Não te digo quem quer interpretar o papel principal! Você vai adorar! Volto depois de manhã. Beijos, te amo muito. Rita volta da cozinha e ouve com prazer o marido. Liga a televisão e senta no sofá com um copo de suco na mão. Na tv "Maridos e Esposas" está sendo exibido. O telefone toca. Rita atende sentada. RITA: - Alô? GEORGIA: - Oi, Rita! RITA: - Oi! Como vai? GEORGIA: - Você já soube do Al? RITA: - Já. Bom, não é? GEORGIA: - Eu e o Fausto adoramos. E nem vamos acusar o Al de plágio! Se não fosse por vocês não sei onde minha relação com Fausto ia acabar. RITA: - Que é isso. Agora é outra história, outra relação. O resto é passado. GEORGIA: - Rita, e o teste? RITA: - [pausa e sorri] O que você acha? Ouve- se o grito de alegria de Georgia do outro lado da linha. Agora só se ouve Rita falando. RITA: - O Al ainda não sabe. Vai ter uma surpresa. E foi assim sem planejamento nenhum, foi o dia que esqueci de tomar a pílula e o Al não usou camisinha. É o máximo saber que teremos um bebê. Rita ouve Georgia. RITA: - É. É isso mesmo. Talvez para Maio do ano que vem. [pausa] Sim. [pausa] Claro. [pausa] Domingo então, tá. [pausa] Tá legal, um abraço. Rita desliga o telefone. Entra Fausto e senta na mesinha da sala, começa a chorar. Al vem atrás. Rita não os vê ou ouve e continua assistindo o filme. AL: - Fausto. O que você esperava de um casamento que se sustentava na mentira e na infidelidade? O que você lucrava saindo com tantas garotas? FAUSTO: - Eram coisas passageiras, sem importância. AL: - Se eram não sei por que continuava. Fiquei sabendo que até a Rita sofreu um leve ataque de sua parte. FAUSTO: - A Rita? [pausa e chora mais] Oh, é verdade, que vergonha. Você que agora está aí me ajudando e eu queria te prejudicar. AL: - Para você ver como são as coisas. Mas, isso foi com a Rita e vocês já acabaram com o assunto. FAUSTO: - [meio suplicando] Juro que a Rita é digna, me desprezou desde o começo, eu que sempre fui um filho da puta. AL: - [ironizando] Eu sei. Fausto se recupera um pouco e sorri. AL: - Escuta, Fausto, precisamos de mudança. Georgia sempre foi dedicada e te amou como nenhuma outra. Acho que nem você merecia mulher assim, mas ela realmente sempre vai te amar, então acho melhor você mudar radicalmente de comportamento. FAUSTO: - Eu vou tentar. Já tenho notado que o apetite sexual diminuiu com relação às outras mulheres e aumentou o desejo pela Georgia. Estou redescobrindo a mulher que tenho. AL: - Eu redescubro todo dia a Rita. E cada dia me apaixono mais. FAUSTO: - Isso é legal. Quem diria que eu estaria falando isso, mas é verdade, nada melhor que o amor e a sinceridade. Agora falo tudo com ela: as impressões e até alguns desejos que eu antes escondia dela. AL: - Isso é bom. Tenha em mente que mesmo que você se esforce ao máximo você sempre carregará esta característica da atração por outras mulheres. Isso não muda da noite para o dia. O melhor que você tem a fazer é se abrir para Georgia e ela sempre te ajudará. Não sei, a fantasia também vai auxiliar. FAUSTO: - Vamos entrar em uma terapia de casal semana que vem. AL: - Só espero que dê tudo certo. FAUSTO: - Obrigado, Al. Por tudo. Fausto sai pela porta. Al o acompanha lá fora. Toca a campainha, Rita se levanta do sofá e vai atender. RITA: - Quem é? [pausa] Quem é? [pausa] As cortinas fecham e após alguns minutos reabrem. Al se encontra na mesa da sala com um notebook, Rita de lado olha a tela. RITA: - Mas fica um final muito aberto. Afinal de contas do que se tratou o roteiro? AL: - Foi mais memórias e impressões. Sabe, um neo-realismo moderno americano. Sei lá. RITA: - Quem seria na porta? O marido?? AL: - Ele é que não era. Estava muito longe. Quem sabe não era o amigo infiel para dar em cima dela e vermos que ele não mudou nada. Ou a amiga que revelaria que eram amantes. Ou a própria morte que avisaria sobre a morte do marido. Ou quem sabe a mãe dela, para dizer que o pai a largará para ficar com outra e seria assim um ciclo de adultérios e infidelidades, dizendo que ninguém é fiel neste mundo. Ou uma suposta amante do marido que viria contar a ela toda a verdade. Ou melhor ainda um bebê bastardo do marido. Ela não aguentaria a surpresa e se mataria. RITA: - Tá, tá, é melhor aberto mesmo, assim não fica aquela coisa de lição de moral da estória. AL: - Isso, o público refletiria sobre os assuntos abordados de forma imparcial, não manipulados, ou sobre a infidelidade, ou sobre o amor ou sobre a arte, etc. RITA: - Como autor é melhor assim. De fora. AL: - Graças a Deus que terminou. RITA: - Qual vai ser o título? AL: - Não sei ainda, talvez os nomes do casal. Tipo Thelma & Louise, Corisco & Dadá, Frankie & Johnnie, Harry & Sally... RITA: - Ficam tantas dúvidas e nenhuma conclusão. Pelo menos aqui temos algumas certezas. AL: - Como assim, certezas? RITA: - Que eu te amo, você me ama, nós nos amamos e somos fiéis, que vamos ter um filho em breve e que este filme vai ser um sucesso! AL: - E quem disse que não fazemos parte de um filme, somos personagens e tomaremos qualquer rumo que o autor quiser dar para a gente? Que estamos aprisionados sem liberdade para expressarmos livremente nossas idéias, nossas vontades, ao bel prazer daquele que escreve. RITA: - Será que é isso o sentido da vida?! AL E RITA: - [para a platéia] Salvem- nos, por favor. O autor quer terminar esta história, por favor não queremos morrer. AL: - [para a platéia] Eu preciso ver meu filme terminado! RITA: - [para a platéia] Meu filho precisa nascer! A arte não deve destruir, só construir! AL E RITA: - [para a platéia] Socorro! Socorro! Não queremos o fim! Eles estendem as mãos como se precisando de socorro enquanto a cortina se fecha. O FIM posted by RENATO DOHO | 1:06 AM |
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