Bando De Cá
Tudo e um pouco a mais


segunda-feira, 24 de maio de 2004  

Irmãos Em Armas

Arthur Dapieve

Março 2002

Cada um tem o seu trecho favorito de Shakespeare. O meu está na terceira cena do quarto ato de "Henrique V". Não se trata nem de um floreio romântico nem de uma indagação existencial, mas de um brado de guerra, o que talvez diga algo sobre minh'alma. Só vou saber no dia em que passar a acreditar em terapia de vidas passadas ou coisa que a valha. É quando o rei exorta as tropas britânicas antes da Batalha de Agincourt, travada e ganha em célebre desvantagem numérica perante os franceses, a 25 de outubro de 1415. É quando Henrique diz: "Deste dia até o final do mundo nós seremos lembrados; nós poucos, nós felizes poucos, nós bando de irmãos; porque aquele que hoje derramar seu sangue comigo será meu irmão; por mais vil que ele seja, este dia enobrecerá sua condição."

(Sempre que Kenneth Branagh pronuncia estas palavras – e as que as precedem e sucedem imediatamente – tenho ímpetos de juntar–me ao esforço de guerra de seu Henrique V. Sir Laurence Olivier pode ser o shakespeariano perfeito, mas Branagh é mais cinema.)

Por isso, quando li que Steven Spielberg e Tom Hanks, de enorme crédito na casa desde "O Resgate Do Soldado Ryan", estavam produzindo uma minissérie de TV sobre a Segunda Guerra Mundial chamada "Band Of Brothers", fiquei ansioso. Ela foi exibida nos EUA no segundo semestre do ano passado. De passagem por Los Angeles, João Barone, baterista dos Paralamas Do Sucesso e também aficionado por assuntos bélicos, assistiu a alguns episódios. Avisou–me: "É a melhor coisa que já vi sobre a Segunda Guerra." Caí, então, num estado da mais profunda ansiedade. Fiquei marcando por pressão a estréia da série no canal por assinatura HBO. Estabelecida a data de 24 de março, anotei na agenda. E, domingo, sentei diante da TV faltando meia hora para o making of ir ao ar, às 21h. Hoje, portanto, posso fazer coro ao Barone: é a melhor coisa que já vi no gênero.

Talvez fosse melhor escrever "subgênero". Porque "Band Of Brothers" – a HBO brasileira teve a elegância de não traduzir o título – é um monumento dividido em dez episódios de uma hora cada que alarga um filão dentro do gênero "filmes de guerra". Não é nem um elogio ufanista dos pára–quedistas voluntários americanos nem uma condenação pacifista dos conflitos. Ambas as tendências já renderam bons filmes de guerra. No entanto, esses irmãos em armas de Spielberg & Hanks seguem uma outra trilha, já percorrida pelo pelotão quase–suicida de "Ryan" na Normandia, pelo batalhão ensandecido de "Além Da Linha Vermelha" (de Terrence Malick) em Gualdalcanal e pelos alemães autodestrutivos atolados na neve em "Stalingrado" (de Joseph Vilsmaier). Os soldados da Easy Company não são nem super–heróis nem fantoches cegos de interesses maiores. São homens. Ao fim de cada episódio, letreiros nos dão ciência de seu paradeiro na vida (e morte) real.

Batizar a sua companhia de "Easy" soa como uma ironia do tipo falar "mulheres de vida fácil" sem atentar para o duro que elas dão. Ser a companhia E do 506 regimento da 101 divisão aerotransportada americana fez aqueles 139 homens comerem o pão que Hitler amassou. Eles saltaram cinco horas antes de o Dia D alvorecer na Normandia, tomaram cidades na França e na Holanda, defenderam as Ardenas do brutal contra–ataque alemão, libertaram o campo de concentração de Landsberg e tomaram o Ninho da Águia, refúgio bávaro do Führer . Ao filmar a primeira dessas ações, os produtores e o diretor do episódio, Richard Loncraine, lograram dar uma versão aerotransportada ao ataque anfíbio mostrado de forma perturbadoramente realista na primeira meia hora de "Ryan". A impotência dos soldados descendo devagarinho entre aviões em chamas e rajadas de balas traçadoras apenas para se desencontrar dos companheiros na penumbra deu o tenso tom da série.

Grudada no livro homônimo do historiador Stephen E. Ambrose, a equipe (diretores, produtores, atores, técnicos) de "Band Of Brothers" chama atenção para a coragem comum a rapazes tão distintos saídos de todas as partes dos EUA, para o senso de responsabilidade surgido dentro da irmandade e para os horrores que ela experimentou no cumprimento de sua missão. Os sobreviventes desses happy few ainda têm momentos de tristeza. Cada episódio é precedido por depoimentos de veteranos da Easy Company. Quando, quase 58 anos depois do Dia D, a gente vê um velhinho engasgando ao lembrar que muita gente foi perdida para sempre naquela madrugada, é difícil não ir junto. "Band Of Brothers", contudo, está longe de ser piegas. Dá, isso sim, um olhar carinhoso sobre uma das mais assombrosas experiências do ser humano. Uma experiência inevitável para aquela geração de americanos (e soviéticos, ingleses, brasileiros). Domingo tem mais.

posted by RENATO DOHO | 2:50 AM


domingo, 2 de maio de 2004  

KILL BILL: Cinema de espetáculo, violência de mentira

Antes de começar a matéria propriamente dita, gostaria de esclarecer uma coisa: não sou contra a violência no cinema, não acho que ela seja nociva e que estraga a cabecinha dos nossos jovens (o que faz isso são outros fatores muito mais preocupantes do que a violência na arte), ou que ela ajuda a criar sociopatas. Muitos dos melhores filmes que já vi são extremamente violentos. Sou um entusiasta do cinema de horror, e dou pulos de alegria com a trilogia dos mortos de Romero, os filmes do Dario Argento, e com a nova geração de cineastas ultraviolentos do Japão, como Takashi Miike, Takeshi Kitano, Shinya Tsukamoto, e etc. Nenhum filme é uma obra de arte pior ou menor por ser violento. A violência não faz um filme medíocre, da mesma forma que a violência sozinha – se não houver o talento excepcional por traz dos criadores – nunca faria um filme melhor. A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, é uma merda não porque sua versão do suplício do filho do homem é graficamente explícita em sua violência. Trata-se, antes de qualquer coisa, de um filme ruim, excessivo, careta, mal dirigido, piegas, cheio de cacoetes dramáticos manjados, como câmera lenta irritantemente recorrente nos momentos de tensão, etc. Isto posto, gostaria de falar sobre Kill Bill Volume 1, fácil o pior filme da carreira de Quentin Tarantino.

No quarto filme do diretor de Cães de Aluguel, Pulp Fiction – Tempo de Violência, e Jackie Brown a violência e o desejo de vingança sanguinária são o tema central. Até aí nenhuma novidade, a diferença é que, diferentemente de seus antecessores, Kill Bill é um filme fraco, bobo, escapista e espetaculoso. Quando meio mundo estava impressionado com a maturidade e a elegância de Jackie Brown, com sua violência discreta, na medida, e seu enredo bem construído e favorecido pela montagem não-linear que é marca registrada do diretor, Tarantino vem com um delírio nerd-juvenil, que se sustenta com um fiapo de história e onde a tal montagem não-linear quase não se justifica, não passando de Tarantino imitando Tarantino. Tudo no filme é fake – as cabeças decepadas esguichando sangue, os membros voando para todos os lados na já famosa seqüência da luta de Uma Thurman com 88 capangas da Yakuza –, tudo tem um exagero de desenho animado, e é justamente este exagero – aliado ao virtuosismo vazio de Tarantino (nossa, que traveling maravilhoso, mas e daí?) – que faz com que o espectador não consiga se impressionar, mas fique somente anestesiado com o espetáculo grandiloqüente das sucessivas batalhas, o claro esforço de que cada fotograma seja cool.

Não conseguimos acreditar nas motivações da Noiva interpretada por Uma Thurman porque o conflito que as regem é muito pouco explorado. Os personagens são unidimensionais e rasos, e todos os eventos do filme que não são as batalhas elas próprias não passam de um hiato inexpressivo, como as historinhas banais que antecedem as cenas de sexo nos filmes pornográficos. Dizem por aí que o segundo volume de Kill Bill vai trazer de volta a verborragia meio filosofia de botequim de Tarantino; que é um filme mais denso; que o primeiro volume lida somente com o estabelecimento da heroína e que a outra metade irá dar coesão e sentido a tudo. Tomara, porque do jeito que está, Kill Bill fica só na promessa, uma pirotecnia banal, salva da mediocridade completa pelo talento indiscutível de seu diretor, mas tão esquecível quanto qualquer filme-pipoca.

posted by Anônimo | 10:45 PM
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